domingo, 22 de abril de 2012

O Colecionador.



Eu não tive uma banda rock.
Quis e fiz bastante esforço, mas não tive uma banda rock. Algumas noites eu ficava improvisando, imaginando o suor e a platéia cheia, as brigas e as entrevistas, mas não tive uma banda de rock.
Eu não criei confusão com os amigos na escola. Acredito que por isso, eu não tive uma banda de rock. Eu tentei seguir na linha, fazer o fácil, a coisa certa. Não fiquei sem recreio, meus pais não foram na escola. Meus amigos não ficaram com medo de serem advertidos. Meus amigos não tiveram medo das chineladas. Na verdade, meus amigos não existiram. Amigos, poucos. Cada dia menos. Eu não fui estudar na casa de alguém. Eu não fui convidado para a festa de aniversario. Isso deve ter me privado de muitas vergonhas, mas também de muitos risos. Eu não fui convidado para beber escondido, nem para uma festa de quinze anos. Então, eu lembro bem de ter visto passar os convites de mão em mão, mas nenhum parou na minha. Eu não comprei uma roupa social, nem flertei com ninguém. Eu não quis beijar ninguém num canto da festa, não passei bilhetinho nem pedi que alguém falasse por mim. Eu não tive para quem pedir ajuda quando senti medo ou dificuldade. Não me ofereceram uma amizade.



Eu não viajei no fim de semana. Não fui para o sitio, para a pousada ou para a casa de praia. Não fui visitar meus parentes distantes, pois a grande maioria sempre morou bem perto. A distância não seria maior do que a viagem de ônibus intermunicipal. Sempre me pareceu muito divertidas as historias que contavam sobre aventuras e lugares diferentes, mas não pude compartilhar minhas aventuras, porque foram bem poucas. Eu não vi meus avos. Eu não ouvi histórias dos tempos antigos nem ganhei presentes imprudentes. Preferi manter a consciência. Eu não pedi coisas caras no Dia das Crianças ou pro Papai Noel. Não ganhei o skate ou o video-game de ponta. Eu não queria ir para a Disney. Dentro de mim, convicto de que seria improvável, preferi não querer. E no fim das coisas eu realmente não fui. Eu ganhei o helicóptero movido a corda, o caminhãozinho que abria as portas, os soldadinhos de plástico e a carrocinha movida a fricção.

Eu tive dias bons. Aquele na ilha foi engraçado. Tenho guardado essas memórias como as essências dos menores frascos, os quais se usa uma pena gota para a emulsão. Em cada novo ano, a memória vai tomando tons de cinza, e certas coisas perdem a conexão. Lembro da primeira vez que fui ao cinema e minha irmã chorou. Lembro das miniaturas que ganhei e das que perdi. Lembro da primeira vez em que pude pisar num palco. Não posso esquecer as luzes, as cortinas se abrindo e das faces de expectativa da platéia. Meu corpo era só nervosismo, acompanhando meus pensamentos que eram de pura confusão. Lembro das datas em que ganhei meu violão e minha guitarra. Os primeiros acordes surgiram com enorme dificuldade, pois os dedos ainda não sabiam o quão macias podem ser as cordas. Meu peito ainda não tinha jeito com a música e tamborilava displicente um ritmo dissonante. Lembro que não tive uma banda.

Não encontrei amigos numa conversa de bar onde combinamos de comprar instrumentos. Não começamos a tentar avidamente tocar as musicas de nossos ídolos. Não começamos a descobrir aos poucos nosso próprio punch. Não trocamos idéia sobre um possível arranjo. Não reservamos um fim de semana para um ensaio despretensioso. Não compartilhamos influencias, nem trocamos bootlegs. Não fizemos uma gravação caseira. Eu não tive companheiros. Eu não fui encontrado por quem estivesse disposto. Não sei o que faltou, qual o elemento crucial. Em todas as vezes em que estive diante do palco, sozinho, tive desejo de que um dia fosse eu lá, entre os fios e outros equipamentos que nem mesmo sei o nome. Tentar diferenciar o timbre de uma SG e uma Stratocaster parece não ter tido muito sentido. Eu tentei entender o poder da criação, o dedo na viola, em sua forma mais pura e etérea. Acreditei por bem não desconsiderar nada. Aceitar e mergulhar a busca pelo som que move as pessoas. Que faz com que milhares de pessoas agüentem o trabalho enfadonho em troca do salário, e depois uma fração por um ingresso. Eu pensei nas pessoas que sairiam cedo de casa, das que enfrentariam engarrafamento. Eu pensei na massa, quase toda bêbada, procurando escape para uma rotina frustrante cantando junto. Eu pensei nas pessoas que imaginariam que a canção fora feita sob medida. Eu pensei em por botar e me dedicar ao trabalho braçal de produzir alimento para alma. Eu, resignado quando vejo pessoas arrastando caixas de som. Não tiveram riffs, nem amigos, nem bebidas, nem viagens, nem cansaço. Apenas a projeção. O sonho.

3 comentários:

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  2. parabéns, apesar de tudo, você conseguiu viver, nem todos tem essa força. Belo texto

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  3. você sai despretensiosamente no meio da tarde pra uma sessão de cinema e acaba com o mundo dando piruetas sobre a sua cabeça. eu saio pra ser do maior tamanho possível entre guitarras, amigos e uma garrafa de whisky. a noite nunca acaba dentro das histórias que você vê de olhos muito abertos de baixo pra cima. eu, no topo, brincando com a eternidade. você brindando à melhor coisa que já sentiu nos tantos anos de fragilidade perfeitamente disfarçada de coragem e coração batendo na ponta dos dedos. se eu te olhar aqui de cima, você vai acreditar em presente sem passado? ninguém percebe nada. quantas palavras tem uma letra de música que nunca será minha?

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