Eu não tive uma banda rock.
Quis e fiz bastante esforço, mas não tive uma banda rock. Algumas
noites eu ficava improvisando, imaginando o suor e a platéia cheia, as brigas e
as entrevistas, mas não tive uma banda de rock.
Eu não criei confusão com os amigos na escola. Acredito que
por isso, eu não tive uma banda de rock. Eu tentei seguir na linha, fazer o fácil,
a coisa certa. Não fiquei sem recreio, meus pais não foram na escola. Meus
amigos não ficaram com medo de serem advertidos. Meus amigos não tiveram medo
das chineladas. Na verdade, meus amigos não existiram. Amigos, poucos. Cada dia
menos. Eu não fui estudar na casa de alguém. Eu não fui convidado para a festa
de aniversario. Isso deve ter me privado de muitas vergonhas, mas também de
muitos risos. Eu não fui convidado para beber escondido, nem para uma festa de
quinze anos. Então, eu lembro bem de ter visto passar os convites de mão em mão,
mas nenhum parou na minha. Eu não comprei uma roupa social, nem flertei com ninguém.
Eu não quis beijar ninguém num canto da festa, não passei bilhetinho nem pedi
que alguém falasse por mim. Eu não tive para quem pedir ajuda quando senti medo
ou dificuldade. Não me ofereceram uma amizade.
Eu não viajei no fim de semana. Não fui para o sitio, para a pousada ou para a casa de praia. Não fui visitar meus parentes distantes, pois a grande maioria sempre morou bem perto. A distância não seria maior do que a viagem de ônibus intermunicipal. Sempre me pareceu muito divertidas as historias que contavam sobre aventuras e lugares diferentes, mas não pude compartilhar minhas aventuras, porque foram bem poucas. Eu não vi meus avos. Eu não ouvi histórias dos tempos antigos nem ganhei presentes imprudentes. Preferi manter a consciência. Eu não pedi coisas caras no Dia das Crianças ou pro Papai Noel. Não ganhei o skate ou o video-game de ponta. Eu não queria ir para a Disney. Dentro de mim, convicto de que seria improvável, preferi não querer. E no fim das coisas eu realmente não fui. Eu ganhei o helicóptero movido a corda, o caminhãozinho que abria as portas, os soldadinhos de plástico e a carrocinha movida a fricção.
Eu tive dias bons. Aquele na ilha foi engraçado. Tenho
guardado essas memórias como as essências dos menores frascos, os quais se usa
uma pena gota para a emulsão. Em cada novo ano, a memória vai tomando tons de
cinza, e certas coisas perdem a conexão. Lembro da primeira vez que fui ao
cinema e minha irmã chorou. Lembro das miniaturas que ganhei e das que perdi.
Lembro da primeira vez em que pude pisar num palco. Não posso esquecer as
luzes, as cortinas se abrindo e das faces de expectativa da platéia. Meu corpo
era só nervosismo, acompanhando meus pensamentos que eram de pura confusão.
Lembro das datas em que ganhei meu violão e minha guitarra. Os primeiros
acordes surgiram com enorme dificuldade, pois os dedos ainda não sabiam o quão
macias podem ser as cordas. Meu peito ainda não tinha jeito com a música e
tamborilava displicente um ritmo dissonante. Lembro que não tive uma banda.
Não encontrei amigos numa conversa de bar onde combinamos de
comprar instrumentos. Não começamos a tentar avidamente tocar as musicas de
nossos ídolos. Não começamos a descobrir aos poucos nosso próprio punch. Não
trocamos idéia sobre um possível arranjo. Não reservamos um fim de semana para
um ensaio despretensioso. Não compartilhamos influencias, nem trocamos
bootlegs. Não fizemos uma gravação caseira. Eu não tive companheiros. Eu não
fui encontrado por quem estivesse disposto. Não sei o que faltou, qual o elemento
crucial. Em todas as vezes em que estive diante do palco, sozinho, tive desejo
de que um dia fosse eu lá, entre os fios e outros equipamentos que nem mesmo
sei o nome. Tentar diferenciar o timbre de uma SG e uma Stratocaster parece não
ter tido muito sentido. Eu tentei entender o poder da criação, o dedo na viola,
em sua forma mais pura e etérea. Acreditei por bem não desconsiderar nada.
Aceitar e mergulhar a busca pelo som que move as pessoas. Que faz com que milhares
de pessoas agüentem o trabalho enfadonho em troca do salário, e depois uma fração
por um ingresso. Eu pensei nas pessoas que sairiam cedo de casa, das que
enfrentariam engarrafamento. Eu pensei na massa, quase toda bêbada, procurando
escape para uma rotina frustrante cantando junto. Eu pensei nas pessoas que
imaginariam que a canção fora feita sob medida. Eu pensei em por botar e me
dedicar ao trabalho braçal de produzir alimento para alma. Eu, resignado quando
vejo pessoas arrastando caixas de som. Não tiveram riffs, nem amigos, nem
bebidas, nem viagens, nem cansaço. Apenas a projeção. O sonho.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirparabéns, apesar de tudo, você conseguiu viver, nem todos tem essa força. Belo texto
ResponderExcluirvocê sai despretensiosamente no meio da tarde pra uma sessão de cinema e acaba com o mundo dando piruetas sobre a sua cabeça. eu saio pra ser do maior tamanho possível entre guitarras, amigos e uma garrafa de whisky. a noite nunca acaba dentro das histórias que você vê de olhos muito abertos de baixo pra cima. eu, no topo, brincando com a eternidade. você brindando à melhor coisa que já sentiu nos tantos anos de fragilidade perfeitamente disfarçada de coragem e coração batendo na ponta dos dedos. se eu te olhar aqui de cima, você vai acreditar em presente sem passado? ninguém percebe nada. quantas palavras tem uma letra de música que nunca será minha?
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